Breve roteiro do desenvolvimento do marketing eleitoral digital
Por Paulo Cezar da Rosa (*)
Ainda que tenham ocorrido antes outras campanhas digitais, ou tentativas delas, a primeira campanha digital de fato foi a de Barack Obama em 2008. A campanha de Obama tinha uma lógica de uso das plataformas digitais, principalmente do Facebook, com a criação de grupos regionais e temáticos, mas o central era uma página-site (uma landing page) onde para entrar, para ter acesso aos conteúdos, você tinha que deixar o e-mail. Ou seja, já havia a compreensão de que para manter um relacionamento era essencial ter acesso aos dados da pessoa.
O e-mail marketing foi uma ferramenta central em 2008. Neste período, as redes sociais ainda estavam em construção e as ferramentas que todos usavam eram o e-mail e os motores de busca. Obtendo o e-mail, a campanha pode estabelecer uma relação com os seguidores de Obama. Os e-mails, assinados em geral por assessores diretos do candidato, eram usados para informar e engajar os apoiadores. Estabelecido o contato, a campanha pedia mais dados, entre eles o endereço para envio de materiais e promoção de atividades nas regiões.
O site chegou a ter mais de 6 milhões de inscritos, e os apoiadores conectados foram sempre os primeiros a saber das iniciativas e do andamento da campanha. Num quadro já de crise e dificuldades na economia americana, a campanha Obama de 2008 foi articulada com uma narrativa de esperança. A onda Obama mobilizou e entusiasmou muita gente. Vale assistir o discurso de posse: https://www.youtube.com/watch?v=b40F_hn9-KQ . Vale também saber que pela internet os apoiadores já haviam recebido antes do evento uma mensagem de agradecimento com este teor, assinada por Obama.
Primeira onda: Obama 2012, 5 Estrelas, Podemos
A vitória de Obama em 2008 desencadeou um giro da política ao uso da internet nas disputas no mundo inteiro. Foi o começo do que podemos caracterizar como primeira onda das campanhas digitais. Obama fez da internet o motor gerador de sua eleição. As ações de marketing, os discursos e as palavras de ordem apareceram primeiro nas redes para só depois se desenvolverem na velha mídia. A TV, que até então, desde a década de 50, era o coração das campanhas, perdeu o seu posto.
Na esteira de Obama, dois outros movimentos, com contornos políticos bastante distintos, foram bem sucedidos ao utilizar grosso modo a mesma lógica digital. Na Espanha surgiu o Podemos e na Itália o Movimento 5 Estrelas.
O M5S surgiu na Itália em 2009 definindo-se como um não partido. Liderado por um comediante chamado Beppe Grillo, o 5 Estrelas se propunha a colocar cidadãos comuns no poder e estabelecer uma democracia direta através do uso da Internet. Usando as redes, o M5S cresceu rapidamente, elegendo diversos presidentes de câmara, além de vários parlamentares em nível municipal e regional. Em 2013, o M5S conquistou 26% da Câmara de Deputados e 24% do Senado, e continuou a crescer nos anos seguintes.
O Podemos participou nas eleições europeias de 2014, quatro meses depois da sua formação. Em menos de uma semana, surpreendeu o mundo político espanhol, tornando-se o partido mais seguido nas redes sociais, superando a direita (PP) e a centro-esquerda (PSOE). O Podemos conquistou cinco cadeiras (de um total de 54), com 7,98% dos votos, sendo a quarta candidatura mais votada em Espanha. Toda a sua organização se deu apoiada nas redes sociais. Da filiação à participação político-eleitoral.
A lógica destas campanhas e movimentos foi a de potencializar politicamente a sociabilidade permitida pelas redes sociais e crescer no ambiente de profundo desgaste da velha política ofertando uma alternativa “nova”. Tanto o 5 Estrelas quanto o Podemos cresceram muito e têm muita força eleitoral ainda hoje. No que diz respeito à relação político-digital, são organizações políticas com base na ideia de aderência, de entregar para o movimento o seu endereço de e-mail e a partir disso desenvolver uma relação política e militante.
Segunda onda: Brexit 2014, Trump, Colômbia
A segunda onda de campanhas digitais vai ter outros componentes. Ainda que tenham ocorrido experiências similares anteriores, a primeira, ou mais importante, é a do Brexit, na Inglaterra, em 2014. Na sequência virá a eleição de Trump em 2016 e também a campanha que derrubou o acordo de paz na Colômbia. Essas campanhas foram muito diferentes do que haviam sido as de Barack Obama, do Movimento 5 Estrelas e do Podemos. O marketing digital passa a trabalhar com um conjunto de ferramentas desenvolvidas para a manipulação dos cenários, vai usar os algoritmos para conduzir o voto e alterar o comportamento das pessoas.
No Brexit, por exemplo, havia cerca de 7 milhões de eleitores que normalmente não iriam às urnas. Seu comportamento tradicional era abstencionista. Utilizando as redes, a campanha pelo Brexit conseguiu que 4 destes 7 milhões fossem às urnas votar pela saída da Inglaterra do mercado comum europeu, alterando o resultado final. Estas pessoas foram incentivadas por ações dirigidas, que exploravam suas frustrações e temores, seus ódios e rancores.
O marketing de Trump em 2016 soube igualmente explorar esses sentimentos. Mas foi muito além. Trump usou largamente as fake news, as teorias de conspiração e a linguagem do “tio do almoço de domingo”. Hillary Clinton era abertamente chamada de ladra. Até de manter e explorar sexualmente escravas brancas no porão de uma pizzaria, Hillary foi acusada. .
Trump teve setores da mídia tradicional atuando em sua defesa, mas a maioria dos grandes meios de comunicação apoiou a candidata democrata. Prometendo uma América Grande de Novo, Trump venceu as resistências primeiro dentro do seu partido e depois em estados decisivos. Mesmo tendo tido menor número de votos, conseguiu maioria no colégio eleitoral. Contribuiu decisivamente para isso o microtargeting, o direcionamento das mensagens para 32 perfis psicológicos diferentes, o uso intensivo de fake news e o incentivo ao ódio.
Na Inglaterra, o marketing digital da campanha foi desenvolvido pela Cambridge Analytica, uma empresa criada por Robert Mercer e Steve Bannon. Mercer era desenvolvedor da IBM nos anos 90. Saiu da IBM e aplicou seus conhecimentos na manipulação dos algoritmos no mercado financeiro. A partir de 2008, quando veio a crise e acabou a festa para muitos neste mercado, passou a investir na ultradireita visando a ampliação da fronteira de exploração da humanidade através da destruição dos direitos sociais conquistados no pós Segunda Guerra Mundial.
A Colômbia, em 2016, depois de 50 anos de atuação das FARC e 4 anos de negociação entre o governo e a guerrilha, estava chegando a um acordo de paz que poderia afirmar um caminho democrático para o país. Este acordo, entretanto, não era desejado pela ultradireita do ex-presidente Álvaro Uribe. Na Colômbia, a manipulação da religião, em especial do voto evangélico, obteve sucesso. Muitos consideraram o papel dos pastores, a manipulação dos preconceitos de gênero, o uso aberto da religiosidade do povo, decisivo para obter um resultado apertado, mas que dividiu ao meio o país.
Terceira onda: Bolsonaro 2018 ….
A terceira onda das campanhas digitais é o que nós conhecemos no Brasil em 2018. É uma campanha que merece o status de terceira onda porque ela não traz apenas a afirmação do novo marketing digital desenvolvido a partir do Brexit. A campanha Bolsonaro em 2018 combina o velho e o novo marketing de uma maneira radical.
No Brasil, as redes sociais foram parar na mão das pessoas. Com 98% de penetração, a internet móvel e o acesso irrestrito, sem custos adicionais, às redes sociais, tornaram o brasileiro um alvo fácil. As mãos dos eleitores viraram parque de diversões para o marketing digital bolsonarista.
Somada a essa facilidade tecnológica, diferente do que houve na Inglaterra e na eleição norte-americana, onde a classe dominante se dividiu entre duas opções, a campanha do candidato da ultradireita, Jair Bolsonaro, vai expressar uma forte e unida frente única de todos os setores da classe dominante. Isso vai se dar primeiro pelo impeachment, por motivos estritamente políticos, da Presidente Dilma Roussef, e logo em seguinda pela defesa incondicional da candidatura do ex-capitão do Exército, quando ficou evidente que, mesmo retirando o ex-presidente Lula da disputa, somente Bolsonaro poderia vencer o PT.
Em parte pela situação particular do Brasil, a campanha digital da ultradireita vai se articular com o marketing de guerra das FFAAs, com a propaganda permanente dos meios de comunicação de massas, principalmente do sistema Globo, com a ação política do Poder Judiciário, através da Operação Lava Jato, com o enfraquecimento e destruição de empresas e setores da economia apoiadores do projeto lulista, com a atuação política e econômica de amplos setores empresariais de ultradireita, com a atuação das milícias, em especial no Rio de Janeiro, e a adoção de soluções de marketing tradicional radicais. Tudo isso tendo por detrás a ação hoje já comprovada dos EUA na sua organização e promoção.
Num primeiro momento, a ação dos meios de comunicação, do judiciário e mesmo dos EUA, não pretendia instalar no poder a família Bolsonaro. O objetivo era claramente colocar na presidência um candidato de direita, preferencialmente oriundo do PSDB. Bolsonaro, entretanto, no embalo da onda internacional de crescimento da ultradireita, usando com agressividade o marketing digital, suplantou todos seus adversários da direita e do centro, se posicionando como alternativa a Fernando Haddad, que substituiu Lula no seu impedimento.
O que tornou isso possível para Bolsonaro foi o surgimento das redes sociais e o uso intensivo do microtargeting, da manipulação dos algoritmos, das fake news. Com as redes, a ultradireita, que desde a redemocratização estava circunscrita aos churrascos de domingo e representações secundárias, encontrou no “mau militar” um agitador e porta-voz nacional. A direita, derrotada pelo lulismo em 2002, 2006, 2010 e 2014, foi rapidamente substituída no cenário político-eleitoral de 2018 pela ultradireita.
O uso intensivo da comunicação digital permitiu à campanha bolsonarista tornar-se viável, mas mesmo assim não foi apenas com base na internet que ela conquistou maioria dos votos válidos no segundo turno. Contribuiu decisivamente para isto a realização de uma operação de marketing clássica na política brasileira: a transformação do candidato em vítima.
A vitimização é um recurso eleitoral recorrente em eleições. A campanha de Bolsonaro utilizou-o de maneira radical, diferente de José Serra, por exemplo, que posou de vítima de uma bolinha de papel. Independente da veracidade ou não do ato, o que importa do ponto de vista do marketing é que Bolsonaro, aos olhos do país, foi vítima de uma facada justamente no momento em que sua campanha mostrava crescimento e capacidade de enfrentar o candidato do PT no segundo turno.
O episódio da facada ocorreu no dia 06 de setembro, um mês antes do primeiro turno das eleições, dia 07 de outubro. Com isso, Bolsonaro, que tinha pouco tempo de TV, inundou as TVs, rádios e jornais de todo o país todos os dias e em todos os horários. Enquanto seus adversários ficaram restritos ao uso dos horários eleitorais oficiais, toda a mídia divulgava o nome e a candidatura do ex-capitão em todos os seus espaços noticiosos e de opinião. Assim, ainda que tenha conquistado um grande número de apoiadores através do marketing digital, Bolsonaro só ganhou amplitude com o apoio da velha mídia. Na internet, o bolsonarismo se posicionou como alternativa e organizou sua base de apoio militante. A conquista da maioria se deu com o uso bastante inteligente do marketing tradicional e da vitimização fora dos espaços oficiais de campanha.
Onde tudo acaba: O futuro já começou
O uso da TV na política teve início em 1952, com uma campanha publicitária que elegeu o general Dwight Eisenhower nos Estados Unidos. Prometendo uma cruzada contra o "comunismo, Coreia e corrupção”, o general foi eleito com facilidade, surpreendendo os Democratas que entraram no pleito com os seus velhos métodos e certos da vitória.
A esquerda em todo o mundo levou mais de 30 anos para começar a reagir ao marketing televisivo. Acredito que já em 2022 é possível enfrentar o marketing digital da ultradireita. Mas, para fazer isso com eficiência, a esquerda não pode se confundir nem vacilar.
Hoje podemos dizer que a sociedade brasileira já integrou a camada tecnológica da internet e das redes sociais em suas atividades, inclusive na dimensão política. O celular é ferramenta de trabalho, de comunicação, de entretenimento e também de participação política. Isso, claro, com todas as desigualdades que o país sofre e com agudos reflexos no terreno digital.
Neste momento, não é certo sequer que Bolsonaro será um nome na urna em 2022. Mas mesmo que não participe diretamente da disputa, nas próximas eleições as técnicas de marketing do bolsonarismo estarão presentes e precisarão ser enfrentadas.
Partimos da ideia de que o deslumbramento inicial com as redes sociais já está se dissipando. Que o povo brasileiro já se “vacinou” ou está se vacinando com relação ao marketing digital, às fake news etc. Partimos também da ideia de que é preciso combinar o velho e novo, ou seja, os velhos modos de fazer campanhas e os novos modos trazidos pela era digital e pelas redes sociais. Além disso, no terreno digital, é preciso ter em conta que tudo hoje é mobile. A mensagem precisa ser adaptada a cada um dos canais, mas sempre tendo em vista o celular na palma da mão das pessoas.
De outro lado, a primeira coisa a ser descartada é tentar copiar os adversários. A ultradireita não tem nada a nos ensinar. Ao contrário, ao dissecarmos o marketing da ultradireita, tudo o que vamos encontrar é manipulação, mentira e autoritarismo. Não existe nada de bom no marketing da ultradireita, mas é provável que muitos busquem utilizá-lo para tentar ocupar espaços em 2022. Afinal, este marketing fez sucesso em 2018 e hoje há dezenas de empresas de marketing ofertando as suas soluções.
Independentemente do desfecho do governo, a terceira onda da comunicação digital preparou o que está por vir no ano que vem, quando teremos uma guerra no terreno digital (e fora dele)…. Hoje, o bolsonarismo tenta uma radicalização ainda maior de seu marketing e já dá sinais de que pretende fazer das eleições cenário para um golpe de Estado, rompendo frontalmente com a legalidade. Os episódios recentes, do “soluço” do presidente buscando reativar o vitimismo, aos constantes ataques à democracia e às urnas eletrônicas, se enquadram neste objetivo.
Em “Fora da ordem” Caetano Veloso tem um verso muito expressivo com relação ao Brasil. Ele diz “aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína”. Este parece estar sendo o caso do Bolsonarismo. Tendo perdido apoio de parte da mídia, de um setor importante do Judiciário, de setores do empresariado, mas mantendo ainda o respaldo do Partido Militar (das FFAAs, que têm estado por detrás de tudo no Brasil desde o golpe que instaurou a República), Bolsonaro é um governo que até meados de 2020 parecia estar em construção. Hoje, em meados de 2021, já está se transformando em ruínas.
Em oposição, o campo em torno de Lula precisa apresentar a sua própria combinação do velho e do novo em termos de marketing. E também entender que o momento é totalmente diferente dos primeiros 15 anos deste século. Até 2014, o marketing paz e amor deu conta de boa parte dos problemas. Hoje, ele é insuficiente. Além de uma mensagem de esperança, será preciso demonstrar ter força e determinação.
Até o momento, Lula parece estar se beneficiando não só do seu passado, mas principalmente do presente desastroso do seu maior adversário. Se a eleição fosse hoje, estaria eleito. Mas Lula não pode se postar apenas como o que já foi; precisa dizer o que pretende ser, apresentar um projeto de futuro capaz de encantar amplos setores da sociedade.
Se em 2002 foi suficiente o marketing “paz e amor”, hoje a fórmula mais adequada pode ser “trabalho e sonho” para construir um Brasil com a grandeza e importância que temos na América e no mundo.
Muito trabalho e sonho, porque uma coisa é certa: O futuro já começou!
////
(*). Jornalista e publicitário. Diretor da Veraz Comunicação e da Red Marketing, empresas sediadas em Porto Alegre.